O retrato célebre de Santos Dumont (Foto Reprodução)

Em Campinas, o ensaio dos voos de Santos Dumont

O dia 18 de setembro de 1903 é uma dessas datas especiais na história de qualquer cidade. No caso, na da cidade de Campinas, que em peso foi para a frente da Estação Central da Companhia Paulista de Estradas de Ferro esperar o “Pai da Aviação”, a glória nacional Santos Dumont. Ele chegaria à cidade para um tributo especial ao maestro e compositor Antonio Carlos Gomes, e como deferência ao Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA), criado dois anos antes. A primeira manifestação pública da instituição foi justamente uma homenagem aos feitos de Santos Dumont em Paris. Agora o inventor podia retribuir à cidade onde fez seus primeiros voos da imaginação, colocando a pedra fundamental no monumento-túmulo do “Tonico de Campinas”, no centro da cidade.

De fato, Santos Dumont sabia que devia muito a Campinas, quando novamente colocou os pés na cidade, naquela manhã festiva. Nascido em Cabangu, local próximo à cidade de Palmira, hoje Santos Dumont, em Minas Gerais, a 20 de julho de 1873, Alberto Santos Dumont era o sexto filho do engenheiro (formado na École Centrale des Arts et Métiers) Henrique Dumont e de Francisca dos Santos, de uma das famílias de portugueses que se estabeleceram no Brasil com a chegada de D.João VI ao Rio de Janeiro em 1808.

O pai se tornou um próspero fazendeiro de café na região de Ribeirão Preto e decidiu matricular o filho em um dos mais afamados colégios brasileiros na época. Era o Colégio Culto à Ciência, de Campinas, criado em 1869 e inaugurado em 1874, por um grupo de lideranças republicanas, quase todas ligadas à maçonaria, que acreditavam em um ensino mais liberal do que o praticado nas instituições católicas tradicionais.

Santos Dumont chega então a Campinas em 1883, permanecendo até o ano seguinte. Em pouco mais de um ano, foi muito fértil o seu contato com alguns dos professores do Culto à Ciência, sobretudo com João Kopke, uma mente aberta e espírito livre, que se tornou uma referência para o sonhador menino de 10 anos.

Detalhe da fachada do Colégio Culto à Ciência, onde Santos Dumont estudou (Foto Martinho Caires)

Nascido em Petrópolis (RJ), e tendo cursado Direito primeiro em Recife e depois em São Paulo, Kopke se estabeleceu em 1880 em Campinas, atraído pela fama liberal do Culto à Ciência e de outra escola onde também deu aulas, o Colégio Florence, de Carolina e Hercules Florence. Kopke foi autor do “Methodo racional e rapido para aprender a lêr sem soletrar” e de “O ensino da leitura pelo methodo analytico”,

A influência do professor foi tamanha que, em 1885, já fora do Culto à Ciência, Santos Dumont passa a estudar em São Paulo no Colégio Kopke, que introduziu novas metodologias educacionais, como o ensino e aprendizado em pequenos grupos, com atendimento personalizado ao aluno.

Assim Alberto Santos Dumont começa os seus estudos, entre São Paulo e Rio de Janeiro, até sua ida definitiva para a Europa, em 1893, um ano depois da morte do pai. Primeiro ele estudou na Universidade de Brighton, na Inglaterra, em 1893, e nos dois anos seguintes em Bristol, a mesma instituição que anos depois seria fundamental na carreira do físico Cesar Lattes, outro nome da ciência e inovação muito ligado a Campinas (aqui).

Em 1897 Santos Dumont se estabelece por fim em Paris, onde alcançaria projeção mundial com seus voos, batendo seguidos recordes, até a lendária volta em torno da Torre Eiffel, entre os dias 9 e 13 de julho de 1901, com o balão número 5. Depois viriam novas e seguidas conquistas, até o voo consagrador do 14-Bis, a 23 de outubro de 1906, no Campo de Bagatelle. Perante uma plateia de 2 mil pessoas, a aeronave era o primeiro objeto mais pesado que o ar a voar, percorrendo 60 metros em sete segundos. Claro, em seguida o próprio Santos Dumont faria aperfeiçoamentos, com sua série de Demoiselles.

Mas antes da fase final desse itinerário de sucesso, Santos Dumont seria homenageado em Campinas. A primeira manifestação pública do Centro de Ciências Letras e Artes, fundado em 31 de outubro de 1901, foi justamente um tributo ao aviador que havia estudado em Campinas.

Santos Dumont e o lendário 14-Bis (Foto Reprodução)

A proposta partiu do escritor Coelho Neto, que na época lecionava no mesmo Colégio Culto à Ciência. Assim o escritor começou a mensagem que seria encaminhada a Santos Dumont, com a ortografia original: “Conheceis, quasi como filho, a terra onde vos saudamos – foi aqui, enlevado nos crepusculos, que começastes a contemplar vosso caminho – o espaço; o ´Pouso do Bandeirante` desbravador das florestas, devia ser o diversorio do homem alado que transita nos ares. Foi d´aqui que partistes levando n´alma, como germen, essa ideia que se fez realidade, essa utopia que desabrochou em gloria”.

Depois, a mensagem prosseguia: “Pelos espaços largos e virgens onde as constelações gravitan não ides solitário, ousado navegador aéreo: Segue-vos a Patria com o olhar enternecido – e essa ternura commovida explica e justifica o seu silencio – e a attenção do Universo é como a luminosa cauda que acompanha o cometa que galhardamente cavalgais”.

E a conclusão: “É justo, pois, que nós, que vivemos nesta cidade de Campinas, onde passaste parte de vossa infância, à sombra de cujas árvores brincastes, cujas fontes tantas vezes vos dessedentaram, cujo sol foi, talvez, o illuminador do vosso espírito no tempo, que  vos deve ser saudoso, em que frequentáveis as aulas do ´Culto à Sciência` e, nas horas de lazer procuráveis curiosamente descobrir nas machinas agrícolas o segredo do movimento, é justo, repetimos, que comvosco nos congratulemos pela conquista magnifica que realisastes dividindo com a Patria a vossa imorredoura gloria, ou antes – dando-lha toda (como aos pobres de Paris doastes generosamente o premio que, com tão clamoroso despeito, vos fora contestado) e garantindo ao Mundo o bem supremo – a Paz, que o vosso invento, como um íris, aanuncia”.

Fotografia histórica do povo reunido na frente da Estação Paulista, para recepcionar Santos Dumont (Foto Reprodução)

O pequeno gênio lembrou-se dessas palavras quando, no dia 11 de setembro de 1903, estando em uma rápida passagem pelo Brasil, recebeu o convite para visitar Campinas, para a cerimônia da pedra fundamental do monumento-túmulo a Carlos Gomes. O convite foi feito pessoalmente por Cesar Bierrenbach, um dos fundadores do Centro de Ciências.

Santos Dumont aceita o convite e chega a Campinas a 18 de setembro, sendo recebido por uma multidão na entrada da Estação Paulista. A cidade praticamente madruga, ao som das bandas da comunidade Ítalo-Brasileira e da União Operária. Depois as bandas da brigada policial de São Paulo e do Lyceu se juntaram à festividade.

São 10 horas e o trem chega como previsto, na estação construída em estilo neogótico. Santos Dumont aparece com o irmão Henrique, ouvindo o som das bandas e dos apitos e sirenes da Estação Paulista e dos trens estacionados.

Próximo movimento, Santos Dumont e comitê de recepção percorrem a rua Treze de Maio, que liga a Estação Paulista ao centro. De um de outro lado da principal via de comércio milhares de crianças saudando o Pai da Aviação, o nome do qual ouviram falar em salas de aula ou pelos pais.

O primeiro destino da comitiva, que atravessava a chuva de pétalas, era o palacete do Barão Ataliba Nogueira, onde seria servido o almoço planejado nos mínimos detalhes para agradar o ilustre visitante.

Santos Dumont sentou-se entre a baronesa Ataliba Nogueira e Maria Gabriella Coelho Neto, esposa do escritor encarregado da saudação oficial, sendo seguido pelo anfitrião. E depois os presentes ouviram a menina Isabelita Barbosa de Oliveira recitar o poema “Plein ciel”, de Victor Hugo.

O poema foi inspirado em uma das grandes novidades da época de Victor Hugo, que prenunciavam uma era de modernidade e grandes realizações: os voos de balão. É uma obra que fala de utopia, de sonhos, e da capacidade humana de realizá-los. Falecido em 1885, aos 83 anos, Victor Hugo era uma lenda e continuava sendo um dos grandes paradigmas intelectuais no início do século 20. O Centro de Ciências, Letras e Artes, responsável pela visita de Santos Dumont a Campinas, tinha no autor francês uma de suas principais referências.

Depois de ouvir o poema, Santos Dumont passa a autografar os cardápios preparados para o almoço. Do palacete, o grupo se encaminhou para o local onde seria construído o monumento-túmulo a Carlos Gomes. A rua Barão de Jaguara, que era o ponto considerado mais nobre da cidade, estava coberta com arcos de flores. Lojas e residências estavam enfeitadas com bandeiras de diversos países.

Começa o evento de colocação da pedra fundamental. O padre Ribas D´Avila dirige a cerimônia municipal. Vários pronunciamentos e Santos Dumont é convidado a instalar a pedra fundamental, usando uma colher que viraria uma das relíquias guardadas no Museu Carlos Gomes, abrigado no Centro de Ciências, Letras e Artes.

Concebido pelo escultor Rodolfo Bernardelli (1852-1931), responsável por grandes obras em várias cidades brasileiras, como no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o monumento-túmulo foi instalado no local onde, anteriormente, funcionava o Paço Municipal, na atual Praça Antonio Pompeo, contígua à área conhecida como Largo do Carmo, onde foi celebrada a primeira missa da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Mato Grosso, a 14 de julho de 1774.    

Colher de pedreiro usada por Santos Dumont para colocar a pedra fundamental no monumento=túmulo de Carlos Gomes (Foto Martinho Caires)

Encerrada a cerimônia, Santos Dumont participa de novas homenagens, no Club Campineiro e no Centro de Ciências, Letras e Artes. Neste, recebe um pergaminho confeccionado para a ocasião pelos engenheiros de Campinas e ouve uma saudação de Carlos Stevenson. O inventor também recebe uma bandeira brasileira, entregue por Aristides Candido de Mello, que representa os alunos do Colégio Culto à Ciência. Dumont balança a bandeira, presenteada para que ele a levasse no seu balão n.10.

O evento termina com novo pronunciamento, do autor do convite ao Pai da Aviação, Cesar Bierrenbach, que assim termina seu discurso: “Mensageiro do Novo Mundo, tendes tornado possível que, a semelhança da Roma antiga, o neo-mundo-romano também possua a legião fulminante. E crede que, na hora propícia, a gratidão do Brasil há de saber acclamar-vos Almirante de suas naves aéreas!”.

Finalmente, Santos Dumont visita o Culto à Ciência, onde mata as saudades de seu tempo de estudante em Campinas. E depois retorna com o irmão Henrique à Estação Paulista, onde novamente embarca para São Paulo e Rio de Janeiro.

O evento em Campinas não passa desapercebido pelas maiores autoridades nacionais e pela imprensa. O presidente da República, Rodrigues Alves, envia telegrama à comissão organizadora. Os ministros Seabra e Barão do Rio Branco e o governador do Pará, Lauro Sodré, amigo de Carlos Gomes, também se manifestam.

O jornal literário satírico “A Platea”, por sua vez, publica um poema inspirado na visita de Santos Dumont a Campinas: “Santos Dumont em Campinas/ beijou toda a moçarada,/ beijou grossas, beijou finas/ Santos Dumont em Campinas./ E dizem as tais meninas/ que o beijar não custa nada./ Santos Dumont em Campinas/ beijou toda a moçarada”. Claro que os versos provocaram polêmica e revolta dos campineiros mais tradicionais. Os espíritos mais abertos, como o do homenageado, consideraram uma manifestação irreverente e propícia à leveza que a obra de Santos Dumont projetava.

Como era natural, os moradores de Campinas e, em particular, os membros do Centro de Ciências, Letras e Artes receberam com grande tristeza a morte de Alberto Santos Dumont, em um hotel do Guarujá, no dia 23 de julho de 1932, aos 59 anos. Em plena Revolução Constitucionalista, que abalava São Paulo e todo Brasil. Mas Campinas sempre se lembraria da sua relação muito próxima com o grande inventor. Mais um capítulo da vocação da cidade para a ciência, a tecnologia e a inovação.

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