Cesar Lattes, referência histórica para a ciência brasileira e mundial (Foto Site CNPq - Centro de Memória do CNPq)

O vulcão Cesar Lattes, ou como Campinas acolhe a inteligência

A rua Culto à Ciência, no bairro Botafogo, em Campinas, tem uma tradição singular, a de atrair alguns dos nomes mais importantes da ciência e inovação do Brasil. Foi assim com o menino Alberto Santos Dumont, que entre 1883 e 1884 estudou no Colégio Culto à Ciência, na época um dos mais prestigiados do país e que figura na biografia do “Pai da Aviação”. Pois a mesma rua Culto à Ciência é o endereço onde funcionaram, desde a década de 1960, alguns dos primeiros institutos e faculdades da recém-criada Unicamp e por onde circulou o físico César Lattes, uma verdadeira lenda na história da ciência brasileira. Sua passagem por Campinas mostra como a cidade , quando corajosa e aberta ao novo, tem vocação para receber e valorizar as pessoas que fazem ciência e se destacam em suas áreas.

Enquanto o campus era instalado no distrito de Barão Geraldo, a Unicamp teve instalações provisórias em alguns espaços e um deles foi o casarão que mistura os estilos neogótico e neorrenascentista construído na rua Culto à Ciência, a poucos metros do célebre colégio. O casarão era de propriedade do grande empreendedor campineiro Bento Quirino e foi a última obra projetada na cidade pelo arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo, antes de se destacar por obras icônicas em São Paulo, como o Teatro Municipal.

O casarão havia sediado a Escola Industrial Bento Quirino e na década de 1960 recebeu alguns dos embriões da Unicamp, fundada em 5 de outubro de 1966, embora tenha sido criada antes, pela Lei Estadual 7.655, de 28 de dezembro de 1962. A Faculdade de Engenharia de Campinas foi uma das unidades instaladas no casarão e por algum tempo os alunos cruzavam nos corredores com César Lattes, que havia se radicado em Campinas, para ajudar a erguer a Unicamp, a convite do reitor Zeferino Vaz.

O físico já era muito conhecido e seu laboratório improvisado no casarão histórico tinha um cheiro peculiar, derivado das placas que ele eventualmente expunha. Eram as placas que Cesar Lattes utilizou na sua mais famosa experiência. Entre 1947 e 1948, levou as placas fotográficas até o Monte Chacaltaya, na Bolívia, a 5.421 metros de altura, para coletar dados sobre a exposição de raios cósmicos.

Homenagem da Finep ao grande cientista (Foto Reprodução)

Analisados na Universidade de Bristol, na Inglaterra, os dados revelaram o decaimento significativo de partículas píon, que os cientistas tanto procuravam desde que sua existência foi prevista na década de 1930 pelo físico teórico japonês Hideki Yukawa. As partículas píon haviam sido detectadas em experimento nos Pirineus do físico italiano Giuseppe Occhialini. Ele tinha sido professor de Lattes na USP e utilizou, em sua experimentação, placas fotográficas com os ajustes que o seu aluno havia feito. Pesquisando em Bristol, Lattes tinha adicionado boro à gelatina das placas fotográficas, como forma de melhor captar as emissões dos raios cósmicos.

Em 1949, o citado Yukawa recebeu o Prêmio Nobel de Física e, no ano seguinte, foi a vez do pesquisador chefe de Bristol, Cecil Frank Powell, receber a cobiçada láurea da Academia Real das Ciências da Suécia, justamente pelas técnicas de emulsão fotográfica que viabilizaram a confirmação da existência de uma partícula atômica além dos prótons, neutrons e elétrons. Cesar Lattes não figurou entre os ganhadores do Nobel, o que para muitos especialistas foi uma das grandes injustiças na história da premiação.

Cesar Lattes no altiplano boliviano (Foto Reprodução do “Jornal da Unicamp”, edição 271, de outubro de 2004)

Mas, de volta ao Brasil, Cesar Lattes continuou sua brilhante carreira, tendo sido um dos fundadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, em 1949. Também foi um dos idealizadores do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), de 1951.

Convidado por Zeferino Vaz, como tantos outros renomados cientistas e intelectuais, para a aventura de estruturação da Unicamp, César Lattes se estabeleceu em Campinas, continuando as pesquisas no laboratório modesto na rua Culto à Ciência. Muitos de seus alunos-auxiliares não prosseguiram na tarefa, em função do forte cheiro emitido pelas lendárias placas vindas dos altiplanos bolivianos. O episódio é relatado no livro “50 anos de Engenharia Mecânica na Unicamp – Uma história de Sucesso”, de Paulo Cesar Nascimento e José Pedro Soares Martins, de 2019, lançado no início de 2020, pelo selo PCN Comunicação.

E de fato Cesar Lattes foi fundamental na montagem do Instituto de Física Gleb Wataghin. Césare Mansueto Giulio Lattes, seu nome completo, nasceu em Curitiba, em 11 de julho de 1924, filho de uma família de judeus italianos, e faleceu em Campinas, a 8 de março de 2005. Em sua homenagem, o CNPq deu o nome de Plataforma Lattes à plataforma oficial de currículos de acadêmicos e cientistas brasileiros. A Biblioteca Central da Unicamp tem o nome de Cesar Lattes, um verdadeiro vulcão para a ciência nacional e internacional, pelo que produziu e inspirou.

Recorte da série “Arquivo Confidencial – Campinas”, publicada pelo jornal “Correio Popular” (Foto Reprodução)

Em agosto de 1997, o jornal “Correio Popular” publicou a série de reportagens “Arquivo Confidencial – Campinas”, assinada pelos jornalistas Beatriz Vicentini e José Pedro S.Martins, com base em documentos do DEOPS, sobre atividades de lideranças políticas, sindicais, estudantis e intelectuais da cidade. O físico Cesar Lattes tinha uma ficha no DEOPS de São Paulo. Os agentes do regime militar inscreveram na ficha várias ações que, em entrevista ao jornal, Lattes negou com veemência. Como se sabe, não foram poucas as invenções cometidas pelos membros do que é ironicamente conhecido como “comunidade de inteligência”.

Capa do livro “Gênios da Humanidade”, de Isaac Asimov, publicado no Brasil pela Bloch editores, citando Cesar Lattes e seu legado para a ciência

Um outro grande feito seu data de 1969, quando, à frente de uma equipe de físicos brasileiros e japoneses, conseguiu determinar a massa das chamadas bolas de fogo, fenômeno induzido pelo intenso choque de partículas dotadas de grande energia e que se supunha constituírem nuvens de mésons. A operação apenas se tornou exeqüível depois da revelação de chapas especiais de chumbo, designadas câmaras, as quais ficaram expostas por raios cósmicos durante anos no pico boliviano de Chacaltaya, onde Lattes iniciara 23 anos antes as suas pesquisas sobre o méson. (Isaac Asimov, sobre Cesar Lattes, em “Gênios da Humanidade”, Bloch Editores, 1964)

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