Rua Irmã Serafina, que tem este nome em homenagem à religiosa que morreu de febre amarela enquanto cuidava das vítimas da epidemia (Foto Martinho Caires)

A onda de solidariedade na Campinas da febre amarela

As múltiplas manifestações de solidariedade, no atual contexto da pandemia de Covid-19, têm importante antecedente histórico em Campinas. Foi a onda solidária ocorrida durante a epidemia de febre amarela no final do século 19, mobilizando toda a sociedade local e também de outras cidades como a então capital federal, Rio de Janeiro.

Os registros históricos indicam que o primeiro paciente confirmado de febre amarela em Campinas, nos surtos de 1889-1897, foi a suíça Rosa Beck, provavelmente contagiada em Santos e que morreu em fevereiro de 1899, em uma casa na rua Bom Jesus, no centro da cidade. Foi inclusive o bastante para que, depois, muitas pessoas interpretassem a tragédia como “castigo dos céus” pela queda da Monarquia, ocorrida em novembro daquele ano.

Certidão de óbito de Rosa Beck (Fonte Pró-Memória de Campinas)

Monarquistas e republicanos, as várias correntes de pensamento e ideologia estariam de qualquer forma ligadas na grande cadeia de solidariedade despertada pela epidemia de febre amarela em Campinas, que já no surto de 1889 alcançou proporções devastadoras. A cidade, que tinha cerca de 12 mil moradores na área urbana e 20 mil na zona urbana, ficou reduzida a menos da metade.

Quem morava na área urbana e tinha recursos em sua maioria fugiu, para outras cidades ou para suas chácaras e sítios. Logo no primeiro ano, segundo estimativas do médico Ângelo Simões, a epidemia matou 1.200 pessoas, ou 10% da população que morava na zona urbana na ocasião – algo equivalente a 100 mil pessoas na Campinas metropolitana, de I milhão de habitantes, do final do século 20.

Foi instalado na cidade um verdadeiro “estado de sítio sanitário”, durante o primeiro surto e mesmo médicos residentes em Campinas preferiram se deslocar Ficaram entretanto alguns, como o próprio Ângelo Simões, o mesmo Valentim José da Silveira Lopes que tinha acusado casos de febre amarela em ] 876, Antônio Alves do Banho e João Guilherme da Costa Aguiar, o ituano que dirigiu a enfermaria do Círculo Italiano durante os meses mais críticos da doença – março e abril de 1889 – e morreu vítima da enfermidade que combatia, a 19 de maio daquele ano.

A solidariedade foi instantânea. As sessões da Câmara Municipal foram transferidas para as casas de campo de vereadores, mas o Legislativo continuou funcionando. A Câmara ainda concentrava o poder político e administrativo local, o que viria a ser dividido apenas com a Proclamação da República, quando se criou a figura do prefeito. Foi inevitável, então, que os vereadores se destacassem no combate à epidemia, a começar pelo presidente da Câmara, José Paulino Nogueira, que também foi infectado mais preferiu ficar na cidade e em plena atividade.

Por ordem da Câmara, a farmácia do vereador Otto Langaard distribuiu gratuitamente remédios aos carentes, vítimas preferenciais da epidemia, uma vez que não conseguiam em geral fugir para outras cidades. Também por solicitação da Câmara, o governo provincial enviou médicos e recursos materiais para Campinas.

A mobilização no Rio de Janeiro por Campinas

A mobilização foi também grande na própria capital do Império. Foi particularmente expressiva a iniciativa dos jornais do Rio de Janeiro, que se empenharam na promoção de vários eventos, com renda totalmente destinada às vítimas e ao combate à febre amarela em Campinas.

Destacaram-se, sobretudo, os jornais A Tribuna Liberal, Gazeta de Notícias, Correio Português, Jornal do Comércio, Jornal dos Economistas, Diário do Comércio, A Estação, Diário de Notícias, Revista Ilustrada, Constitucional, Mequetrefe, A Rua, Cidade do Rio, Gazeta da Tarde e Novidades. Os jornais das colônias também colaboraram, como a Gazeta Luzitana, O Esboço, os italianos Corriere d’ Italia e Voce del Popolo, Timbira, o Município Neutro e o fr’ancês L’ Etoile du Sud.

A mobilização dos jornais do Rio de Janeiro seria reconhecida anos depois, com a denominação dada à praça do Centro de Convivência Cultural, de Imprensa Fluminense.

Placa da Sociedade Protetora dos Pobres, localizada na parede da Catedral Metropolitana de Campinas, em homenagem aos que se mobilizaram pelas vítimas da febre amarela (Fonte Pró-Memória de Campinas)

Pelos mais pobres

Foi grande o empenho de autoridades, em vários níveis, no comate à epidemia e no atendimento às vítimas, mas nada superou a mobilização popular. Alcançou especial projeção o trabalho da Sociedade Protetora dos Pobres, criada a 7 de abril de 1889, em uma assembleia realizada na Matriz Nova, atual Catedral de Campinas.

Entre outros, empenharam-se na estruturação da Sociedade os advogados Alberto Sarmento e Joaquim Gomes Pinto, os padres João Batista Correia Néri e Cônego Cipião Junqueira (escolhido primeiro presidente da entidade) e o delegado de Polícia Alberto Muller, que morreria vítima da doença nove dias depois d’a fundação da Sociedade. Também morreram infectados Francisco José de Carvalho e Cipriano Rosa D’ Andrade. No auge de suas atividades, a Sociedade atendia 1.000 pessoas – 20% da população que permaneceu na área urbana – pobres por dia no depósito de alimentos e remédios montado no Rinque, a casa de patinação instalada na esquina das ruas Conceição e Barão de Jaguara. As ruas próximas ficavam congestionadas com a multidão.

Isenção de fretes nas ferrovias para transporte de alimentos e remédios e passes para viagens nas mesmas ferrovias foram obtidos pela direção da Sociedade. A Companhia Paulista de Estradas de Ferro forneceu ainda água potável para as vítimas. A Casa Santos, Irmão & Nogueira e a Casa Lidgerwood também deram grandes donativos à Sociedade, que encerrou suas atividades a 31 de maio, quando o surto de 1889 estava praticamente controlado.

Outras instituições foram criadas durante a epidemia. A 18 de março de 1889 nasceu a Cruz Verde, por um grupo de italianos integrado, entre outros, por Alfredo Carneiro, Hugo Barsotti, Fernando Balletero, Francesco Fachini, Hugo Rizzi, Prudêncio de Miranda, Benjamin Taglietti, Luís Galgano e Pedro Semmi, que foram escolhidos dirigentes da entidade.

A Cruz Verde foi criada e funcionava no prédio do Círculo Italiano, atendendo especialmente os membros pobres da colônia, mas também estendeu o seu trabalho a outras vítimas. A enfermidade montada em regime de urgência no Círculo foi, aliás, um dos destaques no atendimento aos enfermos, ao lado da Sociedade Portuguesa de Beneficência e da Santa Casa de Misericórdia.

Além do Rio de Janeiro, pelos seus jornais, outras cidades se destacaram no atendimento às vítimas da febre amarela, principalmente no surto de 1889, o mais abrangente. Santos, Guaratinguetá, Poços de Caldas, Amparo, Limeira, Cachoeira, São Paulo e Descalvado foram outras cidades que se mobilizaram para auxiliar os pobres flagelados.

Desinfectório Municipal, localizado onde hoje está a Escola Estadual Carlos Gomes (Foto Julius Nickelsen)

Pelos órfãos

Outras instituições seriam criadas no decorrer dos surtos seguintes de febre amarela. Entre 1889 e 1897, quando a epidemia foi considerada debelada, morreram 2.500 pessoas em Campinas, vítimas diretas da doença. Foi natural que a preocupação da rede de solidariedade se voltasse para os órfãos da catástrofe. Em 1897 foi fundada a Sociedade Beneficente Maximiano de Camargo, em homenagem ao funcionário da Casa Santos, Irmão & Nogueira que teve ativa participação na Sociedade Protetora dos

Pobres. A nova entidade chegou a ter mais de 500 sócios, entre eles Leonor de Camargo, viúva de Maximiano, falecido em 1896. No mesmo ano, de 1897, a 25 de julho, foi inaugurado o Liceu de Artes e Ofício, atual Liceu Salesiano. O Liceu nasceu da iniciativa de Maria Umbelina Alves Couto, esposa do comerciante Antônio Francisco de Andrade Couto, e do Cônego João Batista Correia Néri, que já havia se integrado de modo decisivo nos esforços da Sociedade Protetora dos Pobres.

A ideia de Maria Umbelina, que logo teve o apoio especial do Cônego Néri, era a criação de uma instituição para abrigar os órfãos da febre amarela. A pedra fundamental do edifício foi lançada ainda a 9 de outubro de 1892, e as obras tiveram o apoio, entre outros, do casal barão e Baronesa de Resende e de Francisco Bueno de Miranda.

Construído a partir do projeto do engenheiro salesiano Domingos Delpiano, o edifício abrigou inicialmente o Liceu de Artes e Ofício, sob a direção do padre Alexandre Fia. Em 1910 0 Liceu passou a se chamar “Nossa Senhora Auxiliadora”, e o ensino profissionalizante foi transferido para o Externato são João, também de orientação salesiana.

No mesmo período, também foi finalmente inaugurado o Asilo de Orfãs, ligado à Santa Casa de Misericórdia. Com obras paralisadas há alguns anos, o Asilo foi concluído e inaugurado a 15 de agosto de 1890, em função do empenho do médico Francisco Augusto Pereira Lima, que se inquietou com o significativo aumento do número de órfãs das vítimas da febre amarela.

Os surtos de febre amarela deixaram uma cicatriz enorme em uma cidade que crescia de forma constante e desordenada. Restaram histórias de dedicação, como da Irmã Maria dos Serafins Favre, a Irmã Serafina, que também morreu vítima da doença, enquanto cuidava das vítimas negras e pobres em geral – ela deu nome a uma das principais ruas na região central da cidade, assim como outros que lutaram durante a epidemia. Essas ações de amor à vida, que proliferaram durante a epidemia, serviram de exemplo para várias outras iniciativas, durante muitos anos.

Mas a epidemia também foi decisiva para uma tomada de consciência coletiva sobre as condições sanitárias da cidade. Com o apoio do presidente da Província de São Paulo, Antônio Pinheiro de Ulhoa Cintra, o Barão de Jaguara, foi instalada uma estação de tratamento de esgotos na altura do antigo Córrego do Serafim, então batizado de Canal de Saneamento. Em 1896 foi inaugurado o Desinfectório Central, em um prédio da atual avenida Anchieta e que funcionaria até 1918. A 1 0 de julho de 1899 começaria a funcionar o sistema regular de limpeza pública.

Campinas havia perdido, em função da febre amarela, a liderança econômica e política do Estado. Mas as lições de solidariedade continuariam a ecoar, enquanto as medidas sanitárias e de saneamento ajudavam a preparar o “renascimento”, que aconteceria a partir da década de 1930, com a ampliação e fortalecimento do seu parque industrial.

Maiores informações sobre as expressões de solidariedade e sobre a própria epidemia de febre amarela podem ser encontradas nos livros “Vocação Solidária”, de José Pedro S.Martins, Fundação Educar DPaschoal/Fundação FEAC, Campinas, 1998; “A Febre Amarela em Campinas 1889-1900”, de Lycurgo de Castro Santos Filho e José Nogueira Novaes, Centro de Memória da Unicamp, Coleção Campiniana, Campinas, 1996; e na trilogia de Jorge Alves de Lima, “O Ovo da Serpente”, “O Retorno da Serpente” e “A Serpente Espreita Campinas”, pela Pontes Editores.

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