Maria Eduarda Oliveira Simões, a Duda, do Espírito Santo (Foto Martinho Caires)

Sobrapar – A construção de novos projetos de vida

Hospital único no Brasil atende pessoas de vários estados e países e contribui para a construção de novos projetos de vida, ao promover a reabilitação de pessoas com deformidades craniofaciais

Por José Pedro S.Martins

Minutos depois que passou por mais uma de tantas cirurgias, a primeira realizada no Hospital Sobrapar, em Campinas, Maria Eduarda Oliveira Simões, de 11 anos, confessou para a mãe, Jéssica: “Mãe, estou tão feliz!” A razão da felicidade era a sensível mudança que a menina já identificava, após uma maratona de idas a médicos e hospitais de Vitória (ES), desde os seus primeiros dias de vida.

      Duda, como gosta de ser chamada, nasceu na capital capixaba com Síndrome de Apert, uma mutação genética rara, que atinge uma em cada 120.000 crianças nascidas vivas. A Síndrome provoca o desenvolvimento anormal do crânio, o que afeta a estrutura facial e pode levar a disfunções neurocognitivas, além de prejudicar a mastigação, deglutição e respiração.

Maria Eduarda e a mãe, Jéssica, antes de mais um atendimento na Sobrapar (Foto Martinho Caires)

      Outra característica da criança com Síndrome de Apert é que ela pode nascer com sindactilia, que é a fusão dos dedos dos pés e das mãos. Problemas oculares e cardíacos e alterações no funcionamento de vários órgãos também podem acometer os portadores da Síndrome. “Ela é uma guerreira, enfrenta tudo com uma alegria enorme”, diz a emocionada e orgulhosa Jéssica, resumindo o que a filha já lutou com poucos anos de vida.

     A história de Duda é um dos milhares de casos de crianças e também adultos, de várias partes do Brasil, e igualmente de outros países, que procuram o Hospital Sobrapar – Crânio e Face. A instituição promove a reabilitação de pessoas com deformidades craniofaciais, contribuindo para a construção de novos projetos de vida, em uma sociedade que valoriza determinados padrões estéticos e que discrimina as diferenças. Em toda a sua história, o hospital atendeu a mais de 19 mil pessoas.

Hospital Sobrapar: referência nacional e internacional (Foto Martinho Caires)

    A Sobrapar alcançou o nível de excelência máxima no Brasil, sendo o único que trata integralmente dos portadores de doenças como a Síndrome de Apert. Neste caso, especificamente, da Síndrome de Apert, a Sobrapar é o local onde o cirurgião plástico Cássio Eduardo Raposo do Amaral desenvolveu um protocolo que representou enorme avanço no tratamento da doença. Essa descoberta levou o cirurgião a se tornar uma referência internacional em sua área.

Dr.Cássio Eduardo Raposo do Amaral: inovação e excelência (Foto Martinho Caires)

      Foi o Dr.Cássio quem operou a menina Duda, do Espírito Santo, ao lado do neurocirurgião Enrico Ghizoni e de anestesista. “Casos assim, complexos, necessitam de uma equipe multidisciplinar e de um planejamento muito bem feito para a cirurgia”, conta o Dr.Enrico. A menina passou por duas cirurgias no Hospital Sobrapar, uma delas para separar os dedos das mãos.

     O detalhe é que os dois médicos, Dr.Cássio e Dr.Enrico, trabalham de forma voluntária no hospital. O primeiro tem sua clínica particular, que herdou do pai, o também cirurgião plástico Cássio Raposo do Amaral, o fundador da Sobrapar.

Dr.Enrico Ghizoni: importância do trabalho multidisciplinar (Foto Martinho Caires)

     “Trabalhar na Sobrapar é algo natural para mim, faz parte da minha vida, e é onde nos desenvolvemos enquanto profissionais”, diz o Dr.Cássio. E o Dr.Enrico atua no Hospital de Clínicas da Unicamp e no CAISM. “Estou retribuindo à sociedade todo o conhecimento e técnica que adquiri em universidade pública”, resume o neurocirurgião.

Respaldo da comunidade – A ação voluntária dos dois médicos é um emblema de como o Hospital Sobrapar alcançou o mais alto nível em seu segmento no Brasil. “Chegamos onde chegamos pela ação de muitas pessoas, do grande apoio comunitário, do respaldo de empresários e do esforço de vários profissionais, do Brasil e do exterior”, sintetiza a Dra.Vera Raposo do Amaral, esposa do fundador da instituição e mãe de dois médicos que trabalham na Sobrapar, o Dr.Cássio e o Dr.Cesar Augusto Adami Raposo do Amaral, ambos cirurgiões plásticos.

     Ela se lembra de como o sonho do Dr.Cassio Raposo do Amaral, em fundar um hospital para tratar pacientes com deformidades craniofaciais, evoluiu quando o casal estudava em Paris, na França, em meados da década de 1970. Ela fazia especialização em Psicologia na Universidade de Paris V (Sorbonne) e o Dr.Cássio (depois de ter estudado nos Estados Unidos) também concluía uma especialização, com o professor Paul Tessier, considerado um dos mais importantes cirurgiões plásticos do mundo na época.

Dra.Vera Raposo do Amaral (com retrato do Dr.Cássio Raposo do Amaral, idealizador da Sobrapar, ao fundo) destaca a relevância do apoio da comunidade (Foto Martinho Caires)

      Tessier desenvolveu sua técnica com o tratamento do trauma orbital de pacientes vítimas da Segunda Guerra Mundial. Também tratava vítimas com sequelas de acidentes de trânsito. Por sua causa, o Hôpital Foch, em Paris, virou local de peregrinação de profissionais do mundo, que queriam conhecer a sua técnica. Suas descobertas foram apresentadas em um evento que se tornou lendário, o IV Congresso Anual da Confederação Internacional de Cirurgiões Plásticos, no Hotel Hilton Cavalieri, em Roma, em 1967. Para muitos especialistas, este é o ano do nascimento da Cirurgia Craniofacial.

       Ao retornar ao Brasil, inspirado pelo aprendizado com o Dr. Tessier, o Dr.Cássio Raposo do Amaral fundou a Sobrapar, em 1º de março de 1979, com o apoio da esposa e de um grupo de voluntários de Campinas, que passaram a integrar a Diretoria Executiva, o Conselho Fiscal e Conselho Deliberativo. Um dos voluntários era o presidente de honra, o reitor da Unicamp, Zeferino Vaz. Entre os presentes na cerimônia de inauguração, o Dr. John Marquis Converse, presidente da American Society of Facially Disfigured (atual National Foundation for Facial Reconstruction), ligada ao New York University Medical Center.

     A Dra.Vera ficou responsável pelo Departamento de Psicologia da nova instituição, que funcionou inicialmente no Hospital Álvaro Ribeiro, onde eram atendidas as crianças de famílias de baixa renda. Em seguida, de 1982 a 1990, a Sobrapar manteve suas atividades em prédio da Cruzada das Senhoras Católicas, na rua Dr.Quirino, região central de Campinas.

      O sonho da sede própria começou a ser materializado com a doação de um terreno no distrito de Barão Geraldo, ao lado do campus da Unicamp, por Abraham Kasinski, empresário do setor de autopeças. Localização privilegiada e estratégica, pelo contato estreito com o Hospital de Clínicas e Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.

     A Dra.Vera Raposo do Amaral também se lembra do grande apoio recebido da organização alemã Lateinamerika Zentrum (fundamental nas obras de construção da sede própria) e de um grupo de outros empresários e de bancos, que proporcionaram os recursos para a estruturação do Hospital Sobrapar, inaugurado em fevereiro de 1990.

Hospital Sobrapar já atendeu a mais de 19 mil pessoas, do Brasil e outros países (Foto Martinho Caires)

     O Dr.Cássio dirigiu o hospital até 2 de setembro de 2005, quando faleceu vítima de uma fibrose pulmonar. A Dra.Vera assumiu a presidência, que ocupa desde então, sempre com o suporte dos filhos e do corpo de conselheiros da instituição.

     O reconhecimento internacional foi crescente. A presença de grandes nomes da cirurgia craniofacial de vários países é frequente no hospital. Começou com o Dr.Paul Tessier, que esteve na instituição em 1977.

     Em função de sua dedicação cada vez maior às pesquisas, desde 2006 o Hospital Sobrapar recebe professores-visitantes de renome mundial. O primeiro foi o Dr.Henry K.Kawamoto, da Universidade da Califórnia, que retornou em 2012 e 2013.

     Entre outros, foi professora-visitante, em 2010, a Dra.Françoise Firmin, da Clinica Bizet, de Paris. Como resultado da presença da especialista francesa na Sobrapar, foi publicado em 2011, na Revista Brasileira de Cirurgia Plástica, o artigo “Classificação cirúrgica de Firmin para deformidades de orelha; análise crítica de série de casos operados no Brasil”, assinado em conjunto pela própria Dr.Firmin e pelos irmãos Dr.Cássio e Dr,Cesar Augusto Raposo do Amaral.

      O artigo mostrou o resultado das cirurgias em 12 pacientes na Sobrapar. O resultado foi que “a classificação cirúrgica de Firmin para reconstrução auricular demonstrou ser uma excelente ferramenta para direcionar o cirurgião plástico no planejamento terapêutico”. Um dos exemplos de como o empenho dos profissionais que atual no Hospital Sobrapar tem significado muito para o avanço dos conhecimentos sobre a reparação craniofacial, em benefício de pessoas de todo mundo.  

       Não por acaso, o hospital recebe pacientes de vários países, alguns vindos de situações extremas, como uma criança ferida durante a guerra do Iraque. Também passou pelo hospital uma criança indígena, cuja viagem para Campinas foi financiada pela rede de televisão britânica BBC.

Bazar da Sobrapar: doações e alta qualidade dos produtos comercializados (Foto Martinho Caires)

Sustentabilidade do hospital – Para prestar todo o seu serviço, que é totalmente gratuito, o Hospital Sobrapar luta de forma constante para a obtenção de recursos.  A presidente, Dr.Vera Raposo do Amaral, nota que uma parte dos recursos é financiada pelo Sistema Único de Saúde, mas as despesas apenas são cobertas agregando-se outras fontes, nota ela.

       Como ocorreu no momento de construção do hospital, empresas e pessoas físicas continuam apoiando, observa a Dra.Vera, por meio do mecanismo de abatimento no Imposto de Renda, através do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. A Nota Fiscal Paulista é outra fonte de recursos e existem ações especiais, como o Projeto Adote uma Cirurgia. Emendas parlamentares também já significaram a destinação de verbas para o hospital.

      A Dra.Vera Raposo do Amaral evidencia o papel relevante alcançado, na composição orçamentária do hospital, do Bazar Sobrapar. Idealizado pelo fundador, Dr.Cássio Raposo do Amaral, o bazar tornou-se um dos principais canais de apoio voluntário comunitário à instituição.

       O bazar funcionava inicialmente em uma sala da instituição, para venda de roupas e sapatos doados. Com a ampliação do hospital, em 1995, foi estruturado um barracão na área externa, com o apoio da Fundação FEAC. O espaço cresceu e soma hoje cerca de 2.300 metros quadrados, para receber todo o material doado, que é devidamente triado.

       Um dos pontos fortes do bazar é a área de móveis. Depois da triagem, eles são recuperados quando necessário e se transformam em itens seminovos. São cerca de 250 doações mensais recebidas, de voluntários de Campinas e várias outras cidades. “É necessário fazer o restauro para que o móvel seja inserido no nosso tempo atual, mas preservando sua característica histórica”, afirma Adalberto Balhe, coordenador do bazar.

      Símbolo de ação solidária, o bazar do Hospital Sobrapar contribui com outras instituições. Saíram do bazar, por exemplo, os móveis para a montagem de uma biblioteca em escola no Ceará. A ação foi executada após uma reportagem comovente sobre a escola em rede de televisão.

Painel multicolorido na entrada do hospital reflete o espírito dos serviços prestados pela instituição (Foto Martinho Caires)

Atendimento crescente – Com a projeção alcançada, fruto do reconhecimento do trabalho de seus profissionais, o Hospital Sobrapar registra número crescente de pacientes atendidos. Entre 2016 e 2018 aumentou em 88% o número de atendimentos, de 20.700 para 39.000. No período, o número de cirurgias de crânio cresceu 22%, de 976 para 1.200.

      De fato, para cobrir esse avanço, apenas um esforço permanente de captação de recursos, observa a presidente, Dra.Vera Raposo do Amaral. “A boa notícia é que a comunidade está sempre nos apoiando”, ela afirma, citando o show dos 40 anos da instituição.

      O show “Chitãozinho & Xororó – Entre Amigos” levou 3 mil pessoas ao Expo D.Pedro. Participaram grandes nomes da música sertaneja, como Zezé Di Camargo e Luciano e Edson & Hudson. Foi o segundo show com renda destinada ao Hospital Sobrapar, da dupla que mora em Campinas. “É um orgulho contribuir com esse hospital que beneficia milhares de crianças”, resumiu Xororó.

      O hospital especializado em cirurgias de média e alta complexidade ganha o respeito progressivo não só de Campinas, mas de todo Brasil, por procedimentos como os realizados com a pequena Maria Eduarda Oliveira Simões, do Espírito Santo. Ela está sempre bem arrumada, acompanhada de seu tablet azul, o brinquinho de pérola e a pulseira branca com uma estrela. Duda brilha com a luz da solidariedade típica do Hospital Sobrapar, de Campinas.

O compromisso da instituição continuou firme durante a pandemia. O hospital não paralisou os atendimentos. Pelo contrário, ajustes foram feitos rapidamente, para cumprir as determinações dos órgãos de saúde e não comprometer os atendimentos que geralmente são longos e demandam tempo para atingir os melhores resultados para as crianças. Entre outras ações, a recepção foi instalada em espaço externo, mais ventilado, onde uma profissional faz a triagem, com medição de temperatura dos pacientes e acompanhantes. Também foram tomadas medidas para evitar aglomerações e os profissionais sempre estão devidamente paramentados. O Hospital Sobrapar prossegue sua jornada, pela vida plena dos usuários.

Planos de expansão, pensando no futuro (Foto Martinho Caires)

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