Instituto Agronômico de Campinas: grande contribuição também no desenvolvimento de variedades de soja (Foto Martinho Caires)

O diretor do Instituto Agronômico de Campinas que fez experimentos pioneiros com a soja no Brasil

Por José Pedro Soares Martins

Entre janeiro e julho de 2020, o ano em que o mundo está sendo assombrado pela pandemia de Covid-19, o Brasil exportou 69,7 milhões de toneladas de soja, sendo 50,5 milhões de toneladas para a China, responsável por 72,4% do valor exportado. Os dados são da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério da Economia. A China, um dos berços da soja, que era largamente cultivada e consumida há 5 mil anos, invadida pelo grão produzido no Brasil. A história de sucesso da soja em território brasileiro começa com o engenheiro agrônomo Gustavo Rodrigues Pereira D´Utra, que é um dos principais expoentes da história da Agronomia no país mas que é um nome ainda a merecer o devido reconhecimento. Pereira D´Utra, ou Dutra, como é citado mais recentemente, teve passagem curta mas brilhante por Campinas, tendo sido o terceiro diretor do Instituto Agronômico, entre 1898 e 1906.

Pereira D´Utra formou-se em 1880 na primeira turma da Imperial Escola Agrícola da Bahia, também conhecida como Escola Agrícola de São Bento das Lages e criada a 23 de junho de 1875 pelo Imperador D.Pedro II, através do Decreto  nº 5.957. A EAB, como ficou popularizada, foi instalada no Engenho São Bento das Lages, contando com internato e externato.

Gustavo Rodrigues Pereira Dutra, ex-aluno e professor da Escola Agrícola da Bahia, São Bento das Lages (Foto Memorial Universidade Federal do Recôncavo da Bahia)

Desde cedo um aluno promissor, logo depois de formado Gustavo D´Utra foi aprofundar os estudos na Escola de Agricultura de Grignon, na França. Uma instituição que está diretamente relacionada ao início do ensino da Agronomia no Brasil, onde estudou, por exemplo, Luiz Vicente de Souza Queiroz, o idealizador da Escola Superior de Agricultura fundada pela lei nº 678, de 13/09/1889 e instalada em terras de sua propriedade, em Piracicaba.

Datam de 1882 os experimentos de Gustavo D´Utra com a introdução da soja na Bahia. Ele utilizou cultivares originários dos Estados Unidos, que não se adaptaram bem às condições climáticas da latitude 12 graus. O relato dessas experiências foi publicado por D´Utra no “Jornal do Agricultor”, do Rio de Janeiro, edição de 16 de setembro de 1882 (abaixo).

No artigo, D´Utra descreve inicialmente como a soja era consumida em várias regiões do planeta. “A verdadeira soja do Japão é a Dolichos soja (Linn), planta herbacea, alli conhecida pelo nome de Daidsu, e de cujos grãos os habitantes do paiz preparam uma especie de papa chamada miso, que substitue a manteiga, e um môlho chamado sooia ou soja, com que adubam a carne. Os grãos, preparados por diversos modos, servem-lhes de alimento abundante e nutritivo. Os chinezes preparam também com a soja (Dichos simensis) ou feijão das Indias, e outras especies e substancias nutritivas, uma comida a que dão o nome de kitjap“, ele escreve.

Em seguida, descreve algumas variedades de soja. E ele assinala, sobre as experiências feitas na Bahia: “A pequena cultura experimental, que fizemos, permittiu-nos chegar ao conhecimento do seguinte: A soja é similhante ao feijão carêta ou fradinho (Dolychos monachalis), já quanto a seus principaes caracteres botanicos, já quanto ao seu modo de vegetação (…)”

D´Utra termina o artigo avisando aos interessados na expansão da soja no Brasil: “No intuito de chegar ao conhecimento completo da cultura mais racional deste vegetal, devem aquelles que se dedicam á pratica experimental agricola lançar sobre elle suas vistas, já para tornal-o mais vulgarisado, já para colher todos os resultados de que fôr capaz. Por nossa parte, continuaremos em nossas experiencias, aguardando com justo interesse os seus resultados”.

Com efeito, o próprio D´Utra teria a oportunidade de continuar essas experiências, mas bem longe das terras baianas. Dez anos depois do artigo publicado no “Jornal do Agricultor”, em 1892, novos ensaios com soja são feitos na Estação Agronômica, depois Instituto Agronômico, em Campinas, sob orientação do seu primeiro diretor, o austríaco Franz Wilhelm Dafert.

Gustavo D´Dutra, diretor do IAC (Foto Galeria Diretores do Instituto Agronômico)

Em 1898, os estudos no Instituto Agronômico têm continuidade com o próprio Gustavo D´Utra, que passa a dirigir a instituição, cargo no qual permanece até 1906. Nos anos iniciais do século 20, D´Utra promove a distribuição das primeiras sementes de soja para agricultores paulistas. Entretanto, não havia interesse nos grãos, mas na planta como forrageira e na rotação de culturas.

Durante o tempo em que permanece em Campinas, Gustavo D´Utra se integra totalmente à vida social local. Ele faz parte por exemplo da primeira Comissão de Agricultura e Zootecnia do Centro de Ciências, Letras e Artes, instituição criada em 1901. Também participam da Comissão João Pedro Cardoso, responsável pela primeira comemoração do Dia da Árvore no Brasil (aqui), e Abelardo Pompeu do Amaral, Doutor em Ciências Físicas e Químicas pela Escola de Genebra, na Suíça.

Gustavo D´Utra na primeira Comissão de Agricultura e Zootecnia do Centro de Ciências, Letras e Artes (Foto Martinho Caires)

Depois da passagem por Campinas, Gustavo D´Utra se transfere para São Paulo, sendo nomeado Diretor da Agricultura de São Paulo, da Secretaria Estadual de Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Ele continua com sua intensa atividade de pesquisador, publicando livros sobre temas como “Estrumes mixtos e “compostos”: Sua preparação e applicação às culturas” (1919), “Cultura das mamoneiras” (1918), “Adubos verdes: sua producção e modo de emprêgo” (1919) e “Adubos chimicos: Sua composição e modo de emprêgo nas diversas culturas” (1920).

Em 1912, Gustavo D´Utra é nomeado o primeiro diretor da Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, criada no Rio de Janeiro e inaugurada no dia 10 de julho. D´Utra destaca em seu pronunciamento, no evento de inauguração: “A Escola Superior de Agricultura [e Medicina Veterinária] vem satisfazer a uma imperiosa necessidade do nosso tempo. A ciência, nos últimos tempos, revolucionou tudo, transformando os métodos errôneos, substituindo as regras absolutas ou obscuras por preceitos racionais e de imediato proveito prático. Hoje, só pode lutar com sucesso o agricultor que põe em contribuição os recursos que ela ministra. O que mais sabe é o que mais pode, e este é o que mais colhe, mais vende e mais lucro aufere de seu incessante labor” (Apud MENDONÇA, S. R. de. Agronomia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 1998, p.126).

Mais uma instituição de enorme relevância histórica, dirigida por Gustavo Rodrigues Pereira D´Utra. Um nome que ainda aguarda maior destaque por sua fundamental contribuição para a Agricultura brasileira.

IAC e a soja – Depois da passagem de Gustavo D´Utra, o Instituto Agronômico de Campinas continuou suas pesquisas em soja. Os relatórios da Seção de Agronomia do Instituto, dos anos de 1926/27 e 1929/30 informam sobre três variedades cultivadas na Fazenda Santa Elisa, em Campinas, com produções acima de 4 toneladas por alqueire.

Nesta época, Joao Hermann e Theodureto de Almeida Camargo, o mais longevo diretor do IAC, entre 1924 e 1942, foram pioneiros na sugestão do uso de soja como adubo verde em terras esgotadas.

A mesma Seção de Agronomia desenvolve novos ensaios, no formato de comparativos de variedades, entre 1930 e 1935, e desde 1936 outra Seção, a de Cereais e Leguminosas, apresenta as conclusões dos experimentos conduzidos por Neme Abdo Mene, outro grande destaque da Agronomia brasileira ainda a ser melhor reconhecido.

Outras variedades de soja foram desenvolvidas pelo Instituto Agronômico de Campinas. O cultivar Abura reinou até 1953, quando passaram a ser plantados os cultivares Aliança, Mogiana e Yelnando. Também vieram a Araçatuba, indicada para consumo humano, e a Pelicano, concebida para a indústria moageira e adaptada para o Cerrado. Outros cultivares foram desenvolvidos, com ganhos crescentes de produtividade.

A IAC-8 foi fundamental para viabilizar o cultivo da soja na África, particularmente na Costa do Marfim e em Moçambique. A IAC-100, lançada no final da década de 1980, por sua resistência múltipla a insetos sugadores e mastigadores, teve alcance internacional.

Recentemente, foi lançada a soja IAC-16, indicada para a rotação de cultura de canaviais. A variedade foi desenvolvida por equipe coordenada pelo pesquisador Manoel Albino C.de Miranda e é indicada para a região da Alta Mogiana, no Nordeste paulista, embora tenha sido também testada com sucesso na Média Mogiana (Leste de São Paulo) e na Sorocabana (Sudoeste).

Assim a soja continua progredindo no Brasil, com a expressiva contribuição dos imigrantes japoneses e plantio maciço a partir do Rio Grande do Sul e Paraná e, na história recente, no Centro-Oeste brasileiro. De uma área plantada de 702 hectares em 1940/41, com uma produção de 457 toneladas e rendimento médio de 651 quilos por hectare, para uma produção acima de 120 milhões de toneladas em 2020, nas estimativas do IBGE, em uma área de mais de 35 milhões de hectares e produtividade superior a 3.300 kg por hectare. Um avanço espetacular, embora ainda com terreno para avançar em termos de produtividade, mas sempre com grande contribuição da ciência, a partir de estudos pioneiros de Gustavo Rodrigues Pereira D´Utra.

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