O sorridente Adryan, na Casa da Criança Paralítica (Foto Martinho Caires)

Casa da Criança Paralítica – Inovar Para Acelerar a Inclusão

Instituição pioneira no tratamento de pessoas com deficiência em Campinas se tornou referência por investir na inovação e na pesquisa, com a força do voluntariado

Por José Pedro Soares Martins

Depois de morar durante muitos anos em Brasília, a piauiense Maria Delta Brito Ramos resolveu se mudar para Campinas com o marido para facilitar o acompanhamento médico do filho Fabiano, portador de baixa visão que passou a se tratar no Instituto Penido Burnier, conhecido em âmbito nacional e internacional por sua expertise na área oftalmológica. Estabelecida na cidade, Delta, como é conhecida, não teve dúvidas em escolher a Casa da Criança Paralítica (CCP) como a entidade onde seria voluntária, justamente por conhecer muito de perto as dificuldades das pessoas com deficiência.

Não demorou para ela se integrar de corpo e alma na vida da instituição, na qual contribuiu para dar um novo sentido para o voluntariado. Foram várias iniciativas desde que ingressou na Casa, sendo dela a ideia de montagem de um bazar que já triplicou de tamanho e hoje representa parte importante da receita da entidade. “É impressionante como a gente cresce com o trabalho voluntário”, diz Delta, que, motivada pela sua experiência na Casa da Criança Paralítica, fez uma pós-graduação em Educação Inclusiva.

Maria Delta Ramos, no bazar da CCP: a força do voluntariado (Foto Martinho Caires)

A trajetória de Maria Delta Brito Ramos é um exemplo da importância do voluntariado, da ação comunitária, para a vida da Casa da Criança Paralítica, uma instituição pioneira no atendimento a crianças com deficiência em Campinas e que ao longo de sua história de 65 anos já atendou a mais de 15 mil pessoas, todas gratuitamente. São sobretudo crianças, que tiveram suas vidas melhoradas em razão dos cuidados recebidos. Boa parte delas vive com autonomia e realiza várias atividades.

É o caso de Everton Monteiro do Carmo, campineiro que começou a frequentar a Casa da Criança Paralítica em 1994, quando tinha 7 anos de idade. “Meu tratamento não evoluía na Unicamp e então indicaram a Casa para os meus pais. Daí em diante foi uma melhoria permanente”, lembra Everton, que em função da poliomielite teve um início de paralisia cerebral que deixou várias sequelas. “Com o apoio da Casa, dos médicos e demais profissionais, fui desenvolvendo, estudei em escola normalmente e, também por indicação da instituição, fiz Faculdade de Administração”, conta Everton. Ele lembra que, formado, logo trocou a venda de doces em uma banca no Terminal Ouro Verde por um emprego na Motorola. Hoje trabalha na Flextronic, onde atua na área operacional e coordena um Comitê de Pessoas com Deficiência. “Mas estou sempre na Casa da Criança Paralítica, ajudo no que posso para ver outras crianças como eu a ter uma vida plena como eu tive”, diz Everton.

Everton do Carmo: melhoria permanente desde os 7 anos na Casa (Foto Martinho Caires)

A mesma disposição em ajudar a Casa tem Luana Marçal Souza, que, moradora em Hortolândia, há oito anos leva a filha, Maria Eduarda Vitória Souza, para os cuidados prestados pela equipe multidisciplinar da Casa da Criança Paralítica. A menina nasceu com mielomeningocele (hoje um dos casos mais atendidos pela CCP), uma malformação congênita da coluna vertebral, e a doença foi descoberta quando Maria Eduarda estava com 28 semanas. Após o tratamento inicial, no Hospital Mário Gatti, foi encaminhada para a Casa e desde então frequenta a instituição. “Devemos muito à Casa, a minha filha se desenvolveu bem, frequenta a escola de forma normal e está na terceira série”, conta a mãe, orgulhosa, ao lado de uma atenta e sorridente Maria Eduarda. Ou Duda, como prefere ser chamada. “Eu adoro aqui, todo mundo é bom comigo”, afirma. A mãe Luana faz questão de citar que participa dos eventos da Casa da Criança Paralítica, como a tradicional Festa Junina, com amigos e familiares. “Ajudamos como possível, é muito importante o trabalho  realizado aqui”, sublinha Luana, mãe de uma das 366 crianças atendidas hoje.

Luana e a filha Maria Eduarda (Foto Martinho Caires)

Apoio comunitário

A Casa da Criança Paralítica nasceu, cresceu e tem prestado tantos serviços, de fato, pelo apoio comunitário e pelo trabalho voluntário que recebe desde o primeiro momento. Um conjunto de elementos contribuiu para a criação da Sociedade Campineira de Recuperação da Criança Paralítica, primeiro nome da instituição, em reunião no dia 17 de janeiro de 1954. No ano anterior, um surto de poliomielite no Rio de Janeiro havia chamado a atenção da comunidade médica, pelo grande número de atingidos.

Em Campinas, organizou-se um grupo, por iniciativa do Dr.Ernani Fonseca, pela criação de uma entidade voltada para atender vítimas da doença que ainda provocava dúvidas no meio científico e era fonte de muito preconceito e, sobretudo, de muita dor entre os atingidos e seus familiares – a polio atinge principalmente menores de cinco anos e pode causar paralisia e até a morte, se o vírus infectar os músculos respiratórios.      Apenas entre 1908 e 1909 foi constatado que um vírus era a causa da polio, mas incertezas permaneceram até as décadas de 1940 e 1950.

Sede projetada por Lix da Cunha (Foto Martinho Caires)

O primeiro grande apoio veio do Rotary Club, um clube de serviço que está na origem de importantes instituições sociais, de ensino e pesquisa no Brasil. A primeira sede, provisória, da Casa da Criança Paralítica funcionava na sede do Rotary Club Campinas, na rua Barão de Jaguara, 1301. Os primeiros recursos para o funcionamento da CCP foram levantados pelos rotarianos. O Rotary Club tem uma atuação histórica no combate à poliomielite, tendo lançado em 1985 a campanha mundial Polio Plus, de resultados relevantes na luta pela erradicação.

Empresários e profissionais diversos têm sido determinantes na vida da Casa da Criança Paralítica. Caso do engenheiro-arquiteto Lix da Cunha, autor do primeiro “arranha-céu” de Campinas, o Edifício Sant´Anna, e que assinou o projeto da sede própria da CCP. O prédio foi erguido em estilo Georgiano, caracterizado pela presença de colunatas e pórticos, em área de 5 mil metros quadrados, na rua Pedro Domingos Vitali, no Parque Itália, doada pela Prefeitura em agosto de 1965. A construção da sede própria resultou de campanha de arrecadação de fundos liderada por Dona Nair Valente da Cunha, esposa de Lix da Cunha.

Dr.Reginaldo Cesar de Campos: história desde 1972 na Casa (Foto Martinho Caires)

Tudo isso basicamente pela ação voluntária. E também têm sido voluntários muitos dos médicos atuantes na CCP, como o Dr.Luiz de Tella, que ficou 18 anos à frente da instituição, entre 1958 e 1976. A sede própria foi erguida em seus mandatos. Outros médicos voluntários foram o Dr.Luiz Calil Sader e Dr.Luiz Carlos Costa Morisco, que prestou serviços desde 1971. Na época as sequelas de paralisia infantil representavam o maior número de casos atendidos. Depois passaram a ser atendidos outros casos. O Dr.Morisco é voluntário até hoje.

Outro médico com história na CCP é o Dr.Reginaldo Cesar de Campos, fisiatra e ortopedista formado pela Unicamp e que fez residência na Casa, sob supervisão entre 1972 e 1974 do Dr. José Carlos Affonso Ferreira, um dos grandes nomes da história da Ortopedia em Campinas e no Brasil. O Dr.Reginaldo está na Casa desde 1978, quando retornou ao Brasil de viagem de estudos na Universidade de Temple, na Filadelfia. “Fiz minha residência aqui e ao voltar não pensei duas vezes em voltar a trabalhar aqui, é maravilhoso ver o crescimento das crianças, como elas podem se desenvolver e ter novas possibilidades de vida”, afirma o Dr.Reginaldo, que foi profissional contratado e agora há anos atua como voluntário.

O Dr.Reginaldo assinala que, ao lado do apoio comunitário e do voluntário, um dos pilares de sustentação da CCP nestes 65 anos tem sido a preocupação constante com a inovação, com a utilização dos avanços científicos e tecnológicos no setor. “O atendimento foi sempre sendo aprimorado e hoje é feito por uma equipe multidisciplinar, formada por médicos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, psicólogas e educadoras, pensando na visão integral sobre a criança”, explica o fisiatra.  

Coordenadora técnica da CCP, Lilian Robbi (Foto Martinho Caires)

Inovação e profissionalismo

A atenção da Casa da Criança Paralítica para as inovações científicas e tecnológicas em sua área de atuação está na promoção dos seminários técnicos, realizados habitualmente com grande presença de público, de estudantes e profissionais. O 6º Seminário Técnico, em 2019, foi sobre “Prematuridade: Riscos e Desafios do Século XXI”.

 Sempre com o apoio da comunidade, e particularmente de empresas parceiras, a CCP também procura adquirir os equipamentos mais modernos para atender as crianças. Um dos mais importantes da história recente é o PediaSuit, aparelho utilizado na reabilitação e adquirido em 2013. É um equipamento concebido com base no treinamento de astronautas russos na década de 1970. Como os astronautas voltavam do espaço com problemas na estrutura óssea, movimentos prejudicados e perda de massa muscular, os cientistas desenvolveram uma roupa especial, com acessórios que foram adaptados para a função de reabilitação de pessoas com diversos traumas e distúrbios neurológicos como paralisia cerebral. O tratamento é feito com a pessoa se movimentando em uma gaiola (Spider), onde adquire fortalecimento muscular e refina as funções sensoriais, entre outros ganhos.

Permanente preocupação com a inovação (Foto Martinho Caires)

 O aparelho vem sendo usado com frequência pelos profissionais da Casa da Criança Paralítica. Por pesquisas próprias, a equipe multidisciplinar da instituição chegou à conclusão de que uma sessão semanal, com duas horas de duração, sob rigorosa supervisão técnica, já é relevante para grande salto na melhoria da condição geral do usuário, como acontece com o pequeno e sorridente Adryan Samuel da Silva, que apresenta desenvoltura crescente.

Armando José Suazo Martins, coordenador da oficina (Foto Martinho Caires)

Outro sinal do olhar atento da CCP para a inovação é o seu mais novo projeto, uma oficina de cadeira de rodas, que presta serviços gratuitos a quem procurar, usuário ou não da instituição. “Muitos usuários da Casa encontravam dificuldades na manutenção de suas cadeiras de roda, que acabavam sendo reparadas em oficinas de conserto de bicicletas e outros locais”, comenta Armando José Suazo Martins, coordenador da oficina.

Muito movimento na oficina de cadeira de rodas (Foto Martinho Caires)

O novo serviço foi viabilizado com o apoio da Fundação FEAC, uma parceira histórica da Casa da Criança Paralítica. A procura pela oficina é progressiva, como nos casos de Aron Martins, de Sumaré, e Willian Torres, morador no Campo Grande, em Campinas. Os dois chegaram à oficina por indicação de amigos. “Foi muito bom saber que existe essa oficina. Do contrário teria que pagar e fica caro”, diz Willian.  

Gestão e mix de recursos

A oficina de conserto de cadeiras de rodas foi montada na sala onde antes funcionava o bazar idealizado pela voluntária Maria Delta Brito Ramos. Agora o bazar funciona em uma tenda, em espaço três vezes maior. “Conseguimos essa ampliação com apoio de empresas, é sempre com muito esforço e, claro, com a credibilidade alcançada pela Casa”, afirma a coordenadora técnica da CCP, Lilian Robbi.

O presidente Jonas Lobo: transparência na gestão é chave para avanços (Foto Martinho Caires)

A coordenadora nota que todo o avanço obtido, em termos de modernização dos serviços e equipamentos, apenas foi alcançado pela gestão cada vez mais profissional. Busca de novas parcerias, inclusive a nível internacional (como foi materializado com a Fundação Liliane Fonds, da Holanda); a adoção do planejamento estratégico (com a participação entre outros de profissionais do CPqD e membros da Maçonaria); e a valorização dos funcionários, com ações como os seminários internos, visando proporcionar uma visão ampla do funcionamento da instituição – essas foram algumas medidas na área de gestão nas duas primeiras décadas do século 21, que representaram um salto administrativo e na qualidade dos serviços prestados pela CCP, depois de uma crise que gerou instabilidade entre os anos de 2002 e 2003.

Alegria é marca das crianças nas atividades na Casa (Foto Martinho Caires)

Mas a Casa deu a volta por cima e um dos segredos foi a diversificação das fontes de recursos, visando a sustentabilidade financeira. Empresas têm contribuído muito, de forma direta ou do mecanismo de abatimento no Imposto de Renda (que permitiu por exemplo a aquisição do PediaSuit, com recursos da Exxon Mobil), mas também são importantes os recursos derivados do bazar, da Nota Fiscal Paulista e outras fontes como o apoio da própria Fundação FEAC, sem falar nos recursos públicos, do Sistema Único de Saúde (SUS). “Mas essa maior aproximação com empresas e os consequentes recursos arrecadados apenas são possíveis pela transparência total na gestão”, observa o presidente Jonas Lobo.      

Painel que sintetiza a diversidade, o colorido e a esperança que a Casa proporciona (Foto Martinho Caires)

 A missão da Casa da Criança Paralítica, de permitir o florescimento de esperanças e a concretização de novos horizontes de vida, pode ser traduzida no painel multicolorido, logo na entrada da entidade. São desenhos assinados pelas crianças usuárias, mostrando o seu imaginário criativo e enorme potencial de realização. A Casa é um emblema de que sonhos podem sim virar realidade.

Na pandemia

A Casa da Criança Paralítica, que atende um público inserido no grupo de risco para o novo coronavírus, ficou fechada desde o dia 23 de março de 2020, quando teve início o isolamento social em Campinas. Mas a Casa continuou prestando atendimento às famílias de pacientes. A equipe técnica passou a manter contato diário com as famílias dos usuários, enviando vídeos de atividades e orientando a execução. Já a área de serviço social prosseguiu com atividades remotas como encaminhamentos, instruções de serviços públicos e, especialmente, doação de cestas básicas, pois metade das famílias atendidas encontra-se em condições críticas por falta de alimentação.

O bazar que é símbolo da ação voluntária na Casa da Criança Paralítica (Foto Martinho Caires)

Com queda significativa em seus recursos de manutenção, em função da pandemia de Covid-19, a Casa implementou uma campanha emergencial de doações em dinheiro com o objetivo de minimizar as dificuldades enfrentadas. Também promoveu a campanha “Organização combina com doação”, pela arrecadação de itens para o seu bazar. O Bazar do Sonho voltou a abrir no dia 8 de junho, no período de 12h às 16h, conforme critérios de flexibilização e seguindo estritas medidas de segurança dos usuários e colaboradores. Como ocorreu em outros momentos críticos, a Casa da Criança Paralítica continuou a atender os seus usuários, renovando a esperança em dias sempre melhores.

Casa da Criança Paralítica: o território que é base para novos projetos de vida (Foto Martinho Caires)

Sobre EcoSocial

Plataforma do empreendedorismo social, ambiental e da ciência e inovação de Campinas. As respostas que a cidade dá a múltiplos desafios emergentes.

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